Modo Criativo: Como manter a chama da criação acesa?
Algumas pessoas me perguntam de onde vem minhas canções, projetos, textos, a fonte da minha criatividade. Como faço pra acessar as melodias, letras, canções, os textos e projetos que coloco no mundo. Não há fórmulas. Pra mim tem sido um percurso longo entender o mecanismo de manter acesa a chama da criatividade, mas esses anos de composição me trouxeram alguns entendimentos. É preciso liberar espaço do nosso HD, limpar o lixo emocional e mental do nosso sistema operacional pra poder nos ocuparmos com conteúdos que nos interessam e que estão disponíveis na rede, no plano das ideias, e assim poder criar. São memorias, emoções, feitos, arrependimentos, brigas, despedidas, desencontros, projetos, infância, adolescência, relações mal resolvidas que continuam por anos drenando nossa energia e não nos deixando ser e muito menos criar.
Na crônica “Arte” falei sobre a separação da arte com a técnica, do intelecto com a mente e de como não sabemos lidar com as nossas emoções. Vale a pena ler pra entender como culturalmente fomos “proibidos” de sentir. Especialmente as ditas emoções negativas. Fugimos do problema, das dores, não suportamos olhar no espelho, nos depararmos com nossos traumas. Vivemos culturalmente na mentira, desde pequenos criamos mecanismos pra enganarmos os outros e nós mesmos. Pequenas ou grandes, as mentiras não nos permitem ser quem somos. Em algum lugar, sabemos disso e assim ocupamos nosso sistema com pequenos bugs, erros que aos poucos vão se configurando em problemas maiores capazes de congelar alguns programas, tornar a máquina cada vez mais lenta até travar de vez. O processo de traumas e mentiras colocadas debaixo do tapete são o contrário da criação.
Exatamente assim nos afastamos do nosso ser criativo, da nossa saúde.
Mas proponho dar um passo bem atrás, na mitologia grega, e olhar como a “sombra” vem ocupando nosso imaginário! O dom de Orfeu, filho de Apolo e da musa Calíope, era a música. A Lira, uma espécie de arpa pequena, estava sempre com ele. Tocava melodias tão perfeitas e doces que podiam acalmar qualquer fera. Até os animais paravam pra escutar. Por causa das suas habilidades musicais, ele foi levado para as aventuras com os argonautas. Com seu som, Orfeu os protegeria dos cantos das sereias. A ninfa Eurídice se apaixonou por ele. O resto é uma tragédia grega clássica. Nem mesmo seus dons musicais livraram Orfeu do seu próprio inferno, de suas sombras refletidas no inframundo de Hades e Perséfone.
O mito de Orfeu está em nós. A tragédia grega está norteando nosso subdesenvolvimento, nosso subtexto, subconsciente, subtudo. Até onde nosso imaginário alcança, estivemos milênios matando e morrendo pra sobreviver. Dominados e dominando, na defensiva, acreditando que o outro era a ameaça. Ficamos tempo demais chafurdados em nossas cavernas, subjugados por nossos fantasmas.
Na Idade Média tivemos séculos de violência, matança, enforcamentos em praça pública, cabeças em bandejas e os mais diversos tipos de horror. Avançamos pro Romantismo que fez mais uma releitura da tragédia grega nas suas narrativas que terminavam necessariamente em sofrimento até a morte por “amor”. Até hoje as histórias retratadas nas produções cinematográficas de massa reproduzem os roteiros da desgraça como bem ilustra a serie de TV “Game of Thrones” e tantas outras. Histórias essas refletidas no nosso cotidiano quando observamos os índices de feminicídio mundiais. Estamos a milênios sintonizados na barbárie, vitimização, dor, tristeza, arrependimentos, as baixas vibrações que essas emoções produzem.
Mas como fazemos pra mudar e nos conectar com nossa criatividade?
Deve haver muitas maneiras eficientes pra estabelecer essa conexão. Aqui conto como foi e tem sido me encontrar com meu ser criativo. Pra isso compartilho com você, num exercício livre da verdade, um pedaço da minha história sem filtros.
Morei na Itália por nove anos, dos quais cinco, no mato, na Ligúria. Foram anos delicados e dedicados à composição. Eu escolhi morar no mato, sozinha numa casinha em cima de uma colina a 800 metros acima do nível do mar, num lugarzinho que se chama La Rocchetta, de onde se viam os alpes de Carrara, sempre brancos, e o mediterrâneo de Livorno a La Spezia. Queria mergulhar em mim, saber quem eu era, me apropriar da angústia que me acompanhava. Minha lua em peixes não deixou barato, fui fundo nisso. No paralelo havia, porém, a música conduzindo meu renascimento. Apesar de parecer contraditório, foi um dos momentos que mais compus na vida, só parava pra plantar, pois naquele ambiente era impossível não se apaixonar mais ainda pela Terra. Também colhia uvas e azeitonas entre setembro e novembro e ia tocar música brasileira com meu quarteto em clubs de jazz pela Europa e com o Bossa Nostra, banda italiana da qual fiz parte.
Foi nessa época que percebi as dinâmicas nas relações com mãe, pai, irmãos e outros familiares, traumas, abandonos, faltas, alegrias, arte, música, potencialidades e desastres. Eu me descobri. Foi quando me dei conta de como todas essas experiências estruturantes tinham moldado a minha personalidade até ali e do quanto, em algum lugar escondido, eu sofria por não ter me apropriado desses eventos. Assim comecei um processo de separação dos fatos, dos sentimentos, do julgamento sobre eles e de depuração. Precisava entrar em contato com a minha história pra conseguir avançar, pois ela me empurrou até ali, mas não me deixava expandir, fluir, crescer, brilhar. E brilhar nesse contexto no meu entendimento é criar.
Naquele momento eu não tinha essa matemática clara na minha cabeça: Espaço ocupado com emoções do passado X não expansão e não criação. Só doía e fazia uma canção. Com o tempo fui entendendo que as músicas que eu ia compondo eram a fase de “iluminação” do percurso, quando eu conseguia elaborar os conteúdos em som, palavras e melodias, quando eu conseguia finalmente expressá-las através do canto, da voz, do violão. Ficava horas de frente pro fogo (melhor TV que há) criando até nascer.
Assim fui lembrando – processando – expressando, compondo e cantando
Sempre observava o estado que as músicas que eu compunha me deixava. No início a maioria das canções era melancólica. Era necessário, mas queria aprender a ativar outros centros afetivos. Uma vez ou outra a luz da expansão aparecia e podia observar que essas canções me deixavam alegres, me enchiam de energia, eu só queria cantá-las e sair dando pinotes no meu campinho de girassóis que plantei bem na porta de entrada da minha casa, além da minha horta de rúcula, tomates cheirosos e outras verduras. Também queria arrumar o muro de pedras que caía de vez em quando e ainda a casinha de madeira onde eu guardava a lenha da lareira. Algumas dessas canções podem ser ouvidas no meu primeiro disco, como “Menina de Vento”. Mas frequentemente a melancolia dominava e tudo que eu conseguia produzir era tristeza.
Aqui reproponho a máxima sobre altos e baixos: em vez de “Quanto mais alto se voa maior é o tombo”, sugiro “Quanto mais fundo se vai, mais alto é o voo”. Aos poucos, conforme fui liberando espaço no meu HD afetivo, fui também conseguindo investigar mais os sons que eu chamava de expandidos. Sabe aquela música que faz você ter vontade e voar? Que expandem o peito? Pois é, queria reproduzir aquela sensação que eu sentia nas pessoas e isso virou pauta no meu modo de compor. Mostrava as canções pros amigos, jogava no repertório dos shows que eu fazia e ficava observando como aquela massa sonora chegava nos outros. Acho que me especializei nisso.
Hoje consigo perceber que abrir meu baú de memórias, de vivências e a depuração pela música foi liberando a minha energia que estava represada e não me deixava criar. Precisei ressignificar minha história pra expandir e ter experiências mais potentes. Fui tocar com o Bossa Nostra. Com eles gravei um disco inclusive com quatro faixas autorais minhas, fizemos turnês pela Europa e EUA, no Montreux Jazz Festival, e continuei.
Anos depois, além de continuar compondo e gravando minhas canções, desenvolvo experiências sonoras pra espaços públicos e lojas onde uma grande quantidade de pessoas transita todos os dias. Os nomes do que a gente faz na Zanna Sound é Sound Branding, Music Branding e Sound UX. Sim, porque uma das frentes que me interessei ao longo da vida, além da música, foi o branding. Depois de passar por etapas estratégicas, em que identificamos e criamos um briefing certeiro de criação sonora, eu componho a música que vai soar nos espaços, desenhamos a voz, seu tom e seu jeito de falar precisos, criamos experiências no ambiente, enfim, povoamos de sons e silêncios vários meios de transporte e marcas pelo Brasil.
Compor, receber uma melodia, desenhar suas possibilidades harmônicas, que são os climas, os vários estados emocionais que a música pode provocar, depois pensar no arranjo, produzir e ver o produto pronto, é um presente! Deixa o dia diferente. Eu me beneficio muito do processo criativo, a música me habita semanas e depois que vamos pro estúdio, pronto, todo mundo fica com a música na cabeça também e daqui a pouco tá na cabeça de milhares de pessoas. Assim a rede sonora começa, assim ela se expande.
Minhas ferramentas foram a terra, o fogo, algumas leituras como Osho e a música. Fundamentais pra me desenterrar, libertar e criar. Com isso não quero dizer que todos precisam se trancar no mato com o fogo e a música pra renascer. Esse foi apenas o meu processo, cada um vai encontrar o seu. Mas há uma etapa crucial comum a todos, os momentos quando tudo fica incerto, escuro. Só segue! O resultado vem com o tempo e lembra que:
"Quanto mais fundo se vai, mais alto é o voo"
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